sexta-feira, 3 de junho de 2016

Uma história de amor por uma antiga amante da vida

Vivia ela em um antigo vilarejo no sul da França com sua família e alguns amigos. Os casamentos eram sempre arranjados e consentidos pelas famílias quando havia algum benefício mútuo. Para as famílias de camponeses mais pobres, esses benefícios muitos vezes eram inexistente e as coisas aconteciam “naturalmente”, logo, era possível se apaixonar e casar com o homem dos seus sonhos.
Engano muito comum: ao se casarem, as mulheres continuam na mesma escravidão do trabalho das lavouras feudais e ainda mais além , da lida doméstica. Eram obrigadas a servirem seus maridos como criadas ou simples objetos.
Nesse vilarejo em que vivia, algumas famílias eram mais conhecidas e possuíam algumas condições de vida melhores. Assim, se formava uma outra cadeia hierárquica dentro daquele feudo ou vilarejo. Haviam as ordens do rei e do clero, e as ordens daquelas família mais abastadas dentro do vilarejo.
Uma dessas famílias principais era a em que eu vivia. Eu era tida pelo camponeses como uma donzela e frente aos Reis um lixo, plebe que servia de escorria aos seus desejos. Quando me designaram o casamento com outra família de mesmo poder, não tive dúvidas em aceitar e fiquei inclusive muito contente. Até a época em que me casei não tinha “amores”, logo o casamento arranjado me pareceu uma ótima ideia.
Começa a “vida a dois” e a surgir uma escravidão nitidamente marcada pelas ofensas domésticas e quando não a agressão. Me tornava uma serviçal do amor de um homem que eu jurei amar .
A cada palavra, cada gesto, cada ação, cada toque desse amor, meu ódio e rancor cresciam. Crescia meu orgulho e minha vontade de ser liberta, de ser guerreira.
Dentro de nosso vilarejo, bem ao centro, existia uma pequena capela em que rezávamos e prestávamos nossos pedidos a Deus Pai como bem éramos ensinados pelo clero. Cada um de nós via naquele Deus, um ser severo, austero e de grande poder. Eu via nele um guerreiro de alma simples e livre. Almejada ser essa minha essência: de uma guerreira da liberdade, nem que para isso, eu fosse crucificada.
Um dia após ter sido severamente agredida me ajoelhei frente aquela capela durante uma fria e escura noite e clamei pela força daquele deus. Eu estava com uma longa e puída saia preta que cobria até meus pés e um véu que encobria meu rosto e minha lágrimas de amor.
Um vento forte estremeceu todas as casas e arvores de nosso vilarejo. Vento esse, que arrancou um dos anjos que ficava em uma coluna logo na entrada desse vilarejo. Ao cair, o anjo foi espedaçado pelo impacto e eu ouvi uma gargalhada que parecia sair de uma espécie de cova (nossos mortos eram enterrados próximos a essa capela).
Me dirigi até o local onde pensara ter ouvido as gargalhadas e lá encontrei uma velha senhora que estava nua, liberta com seu corpo e sua aceitação. Ela aceitava o amor que era. Bebia em uma espécie de cálice de ouro uma bebida viscosa que identifiquei como sendo vinho. Em sua mão esquerda, tinha uma espécie de faca pequena e bem pontuda cravejada em ouro e pedras.
A velha alcançou a taça me oferecendo um gole questionando:
“Eres uma guerreira? Eres tu uma escrava do amor? “
Eu consenti com a cabeça, incrédula com a cena que presenciava e se aproximando ela corta minha garganta com a faca que trazia em sua mão.
Acordo em frente a Capela do Vilarejo no outro, dia assustada com a experiência que tivera anteriormente.
Acordo uma nova mulher: não mais escrava mas senhora do Amor.
Acordara ciente de minhas responsabilidades e de minha força como mulher. Acordara decidida a mudar minha vida e lutar pelos meus ideais e minha ações.
Morrera naquela noite , assassinada por uma velha , que bebia vinho em uma cova aquela moça simples porém bela .
Nascera uma senhora forte, empoderada de força e beleza, para lutar pelo mesmo amor que fora vitimada. Jurei que serviria o resto de minha existência a despertar nas mulheres o mesmo que aquela velha senhora despertara em mim.
Minha vida foi marcada pelos caminhos do mundo. Me tornara uma andarilha que ia de vilarejo em vilarejo, pregando as mulheres que sofriam com seus maridos a libertação. Para isso, me infiltrava em meio a população e permanecia o tempo que julgasse necessário para conseguir atingir as mulheres que tinham o mesmo potencial. Aprendi a oferecer da mesma taça que me fora dada anteriormente.
Me tornara uma guerreira, aprendi a me defender daqueles mesmos homens que me atacavam anteriormente, assim, jurei que em momento algum, outro homem colocaria suas mãos em mim. Por anos, pregando meus ideais nos vilarejos, consegui que algumas mulheres me seguissem. Éramos conhecidas como as Damas da Noite pois sempre saíamos ou chegávamos nos vilarejos, cobertas pela lua. Andávamos sempre com saias e véus.
Em um vilarejo que adentramos próxima a antiga cidade de Roma, fomos acusadas de bruxaria, perseguidas, torturadas pelo clero e condenadas a fogueira da Inquisição. Condenadas a sermos queimadas por Deus.
Quando em praça pública estavam fincados os troncos que queimariam a mim e as Sete mulheres que me acompanhavam dispostos em um círculo, se encontrava bem ao centro, aquela mesmo velha senhora de meus sonhos. Tinha em suas mãos, o mesmo cálice que me servira anteriormente e na outra, uma cruz de ouro.
As pessoas ali reunidas pareciam não verem aquela senhora de figura estranha e enquanto estávamos amaradas e o fogo pronto a ser ateado aos nossos corpos, ela sussurra em cada um de nossos ouvidos, servindo o mesmo gole de seu vinho. Só não servira mais a mim, pois afirmara que quem já tivesse tomado de seu vinho, viveria eternamente:
“Não temam minhas pequenas, eu sou o caminho e a vida”  
Nossos corpos queimavam e ardiam em brasa viva. Dor não sentíamos e libertas da carne, dançávamos em meio as chamas.  Aquela velha senhora não parava de gargalhar e dançar faceira.
Hoje, venho nos terreiros de Umbanda como Maria Quitéria das Almas, servindo ao mesmo Deus que me queimou viva. Não aquele mesmo Deus, mas o Deus manifesto em sua forma feminina e que me dera uma nova vida de liberdade e amor.
Venho, com minhas sete companheiras. Viemos, gargalhando e trazendo a energia do fogo que destruiu nossos corpos e libertou nossa alma.

“Foi condenada pela Lei da Inquisição
A ser queimada viva, Sexta Feira da Paixão
O Padre rezava, o Povo acompanhava
Quanto mais o fogo ardia
Mais ela dava gargalhada “


Maria Quitéria das Almas
03 de Junho de 2016

Laroyê Exú! Saráva as Sete Linhas de Umbanda! Adorei aos Pretos Velhos!
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